sábado, 18 de maio de 2013

A Semente de Prata - Parte II

Silver Leaf, by Latyrx


Divyn vagueou pelo bosque, olhando por ente os ramos, enquanto escutava o peculiar tilintar das folhas quando o vento as agitava. Lembrava a voz das fadas, enquanto cantavam aos elementos.
“Escolhe uma árvore” disse Urië, sem aviso, apertando-lhe um pouco mais a mão.
– Porquê? – A elfo piscou os olhos.
“Por favor, simplesmente escolhe” pediu ele, esboçando um sorriso enigmático.
Apesar de não fazer ideia da razão do pedido, Divyn acedeu. Fechou os olhos e caminhou sem destino certo, deixando-se guiar pelo sexto sentido. Tropeçou numa raiz mais saliente e só não caiu porque Urië a apoiou. Mas, por fim, a mão acabou por tocar num dos troncos.
– Esta – sussurrou, abrindo os olhos para contemplar a sua escolhida. Linhas de prata corriam a casca , esguias, perdendo-se nos labirintos da árvore.
O seu príncipe fez um aceno e esticou as mãos para um ramo mais baixo. Colheu uma pequena semente, que lembrava uma ervilha prateada e observou-a com atenção, antes de pegar na mão da elfo e depositar nela a semente. A seguir fechou-lhe os dedos.
“Uma recordação, pelo teu aniversário. O sítio onde a plantares terá de ser escolhido pelo teu coração, e só por ele” recomendou, prendendo o olhar no dela. “Não te assustes quando ela desabrochar”.
Franziu as sobrancelhas.
– Porque me haveria de assustar? – quis saber, muito intrigada.
“A semente drena a terra de forma ávida, para conseguir despontar. Mas depois verás” garantiu.
Divyn remoeu-se de curiosidade e Urië sorriu ao sentir o que borbulhava na alma da namorada. Ofereceu-lhe um beijo de consolo, para depois a levar para casa.
Os lábios só se apartaram definitivamente quando ele abandonou o quarto dela, ao despontar do Sol.

Quando acordou, já perto da hora de almoço, Divyn procurou a caixinha de madeira dentro da qual guardara a semente. Ponderou por um pouco, antes de descer até ao jardim, onde andou às voltas, de regador na mão, até acabar por escolher um canteiro de pequenas flores azuis. Ajoelhou-se na terra ainda húmida e escavou um buraco com as próprias mãos, sujando as unhas de terra, até achar que já podia enterrar a semente. Ficou a mirar o lugar por um bocado, como se a árvore pudesse crescer de um segundo para o outro, mas acabou por perceber o quão tonto isso era. Abanou a cabeça e afastou-se.
No dia seguinte um burburinho matutino acordou-a. Esfregou os olhos e soltou um bocejo longo, antes de ir até à varanda, ainda descalça. Piscou os olhos. Os três jardineiros discutiam de forma acesa, à beira do canteiro onde plantara a sua semente de prata, e não foi difícil descobrir porquê: todas as pequenas flores azuis tinham definhado e morrido.
Levou as mãos à boca, chocada, lembrando-se de imediato do que Urië lhe dissera. Não o compreendera no momento, mas agora era por demais óbvio. Mas o que poderia fazer?
Os dias passaram sem que a árvore despontasse, o mesmo acontecendo em seu redor, num raio de dois metros. Todos os dias a elfo regava-a um pouco, frustrada. Ainda tentou inquirir Urië a respeito disso,  no entanto ele pediu-lhe apenas mais paciência.
Quase um mês depois, numa noite de Lua Cheia, Divyn escutou um tilintar abafado, vindo do exterior. Não o reconheceu logo, mas quando foi espreitar à vidraça, o brilho das folhas de prata, sob o luar, apanharam-na desprevenida. A árvore despontara, ultrapassara-a em altura, e estava repleta de flores de pétalas quebradiças. Sentando junto à base da árvore, Urië fez-lhe um aceno com a mão, chamando-a para admirar mais de perto o seu presente de aniversário.
Uma semana depois, para surpresa sua, e dos jardineiros, o canteiro de flores azuis floresceu mais viçoso do que nunca, quando a árvore devolveu os recursos que tomara emprestados.

Nota:

Urië © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra"

A Semente de Prata - Parte I



O Sol escondia-se no horizonte, frente a frente consigo. A visão do pôr-do-sol era igualmente bela e melancólica, e enchia o espírito de suspiros contidos.
Sentada no jardim do palácio, Divyn aguardava o seu cavaleiro andante. Lançou um olhar ao bosque. Urië chegava sempre por entre as árvores, vindo de um algures que ela ainda não descobrira onde era, apesar de já ter vagueado por ali, em busca de um portal, uma passagem secreta, um túnel… qualquer coisa. Soltou um dos suspiros que o pôr-do-sol fomentara.
Quando do astro rei sobrava somente aquele clarão alaranjado que tinge os céus, a jovem elfo ergueu-se e sacudiu as calças. Talvez ele não pudesse vir, talvez não soubesse sequer que dia era aquele. Regressou então para o interior do palácio, onde a família a esperava para uma pequena festa simbólica. Quando os abraços, os beijos e as felicitações terminaram, Divyn subiu para o quarto, de coração pesado. Ele não viera mesmo.
Sentou-se à beira da cama, mirando as vidraças fechadas através das quais as estrelas a espreitavam, cintilando segredos. Elas sabiam qualquer coisa, percebia-o no seu tremeluzir.
A elfo resmungava para si, quando um relinchar, vindo lá de fora, lhe chamou a atenção. Ergueu-se de um salto e por um triz não se estatelou, quando o pé ficou preso no tapete, ao correr para a varanda. Por vezes conseguia ser tão desastrada quanto a mãe.
Abriu as vidraças de par em par e debruçou-se no parapeito. Lá em baixo, um bonito equídeo de pêlo de prata aguardava-a, expectante. O chifre incrustado na fronte era da cor do marfim ao luar. O unicórnio dobrou ligeiramente uma das patas da frente e fez-lhe uma vénia respeitosa.
– Estás atrasado, meu príncipe – notou a jovem. No entanto, a sua má disposição fora substituída por um bonito sorriso.
“Alguns contratempos detiveram-me, bela donzela”. A voz dele ecoou-lhe na mente, suave e contudo firme, revelando uma força que o seu aspecto delicado escondia. “Posso pedir-te para que desças? Se não puderes, não irei insistir. Deves estar cansada e a preparares-te para dormir…”
Uma risada fresca escapou-se-lhe por entre os lábios rosados.
– Tolo! Vou já descer, não te preocupes – garantiu, já a voltar costas e a correr de regresso ao quarto. Pegou só num xaile leve que pôs sobre as costas e desceu. Ele já a esperava junto à entrada do jardim, quando ela passou a porta e se lançou para ele, abraçando-o pelo pescoço esguio. Acariciou-lhe a crina que parecia seda e beijou-lhe o pêlo entre os olhos azuis.
Ele recuou um passo, quando Divyn o largou, e baixou-se um pouco de forma a que a jovem pudesse trepar-lhe para a garupa.
“Sobe”, incentivou.

Deixou-se levar por entre o bosque, até junto de uma velha árvore de tronco encarquilhado e ramos nus. Pousado nela, um mocho anão observava-os, sem medo. Inclinou um pouco a cabeça.
Quando o unicórnio se voltou a baixar, ela desmontou.
– É a partir daqui que vais para o teu mundo? – perguntou a elfo, curiosa.
"Contigo sim" disse, aproximando-se da árvore. Depois de a examinar, inclinou a cabeça, até o corno tocar num nó específico.
Sem aviso, a madeira gemeu. A casca do tronco estalou, e os ramos debruçaram-se sobre eles, como terríveis garras de bruxa, que se enterraram na terra. Estavam encurralados.
Divyn chegou-se mais para ele, assustada. Lembravam duas aves engaioladas.
– Urië – sussurrou, quando os ramos começaram a reluzir no mesmo tom que o luar.
“É melhor fechares os olhos” recomendou. “Há quem não goste de assistir à passagem”.
Abanou a cabeça. Não. Ela queria ver até o mais pequeno pormenor, absorver tudo e compreender.
A noite começou a diluir-se, como se fosse uma imagem reflectida num espelho de água. Por um momento, as estrelas desapareceram, as árvores desvaneceram-se, os sons apagaram-se. Susteve a respiração, quando o solo lhe raspou nas solas dos sapatos, mutando a sua consistência.
Aos poucos, um perfume fresco serpenteou em seu redor, como um feitiço, enquanto o cantar de água corrente a alcançava. Os ramos retorcidos quebraram-se com o som do pio de um rouxinol e desfizeram-se em partículas tão pequenas que logo as deixou de conseguir ver. E a atenção focou-se no novo céu.
Ali também era noite cerrada. Apesar de as estrelas cintilarem da mesma forma, as constelações eram outras e o ambiente parecia estranhamente leve, o ar mais puro. Inspirou fundo.
O toque suave de uma mão de encontro à sua fê-la baixar o olhar. Constatou de imediato que já não estavam num bosque, mas sim no topo de uma colina. Lá em baixo, pequenos cursos de água corriam para destino incerto, rumorejando entre si numa língua líquida. Muitos pontos brilhantes esvoaçavam um pouco acima das águas e entre a relva, como se metade das estrelas do céu tivesse caído. E ao longe, para completar a paisagem digna de ser gravada em tela, erguia-se um belo palácio de cristal, cujos minaretes reflectiam o luar.
– É tão lindo – murmurou, quase não conseguindo acreditar. – Trouxeste-me ao paraíso?
Desviou o olhar para o homem, e não o unicórnio, que estava agora ao seu lado. Uma estranha beleza reflectia-se do seu cabelo cor de luar; da pele sem rugas, como que esculpida em mármore; dos olhos cinzentos em forma de amêndoa e sobrancelhas finas. Parecia um anjo a quem tinham roubado as asas. Sentia-se pequena ao lado dele, e feia.
"Tola" os pensamentos dele chegaram até si. Urië era mudo, e o esforço que fazia para conseguir falar com ela daquela forma martirizava-o. Ele é que era o tolo!
"Hoje não te vou levar ali" apontou o palácio. "Mas sim ali".
Fê-la dar meia volta.
Se o espanto fosse contagioso, tudo em seu redor teria ficado estupefacto. A colina fazia parte da orla de um bosque de árvores baixas, todas elas da mesma espécie. Porém o mais notável eram as copas espessas, repletas de folhas de prata.

Nota:

Urië © me

Ambas as personagens pertencem ao RPG "Terra Negra"